CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(1902-1987)
Carlos Drummond de Andrade (Itabira do Mato Dentro [Itabira] MG,
1902 - Rio de Janeiro RJ, 1987) formou-se em Farmácia, em 1925; no mesmo ano,
fundava, com Emílio Moura e outros escritores mineiros, o periódico modernista
A Revista. Em 1934 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde assumiu o cargo de
chefe de gabinete de Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde, que
ocuparia até 1945. Durante esse período, colaborou, como jornalista literário,
para vários periódicos, principalmente o Correio da Manhã. Nos anos de 1950,
passaria a dedicar-se cada vez mais integralmente à produção literária,
publicando poesia, contos, crônicas, literatura infantil e traduções. Entre
suas principais obras poéticas estão os livros Alguma Poesia (1930), Sentimento do Mundo (1940), A Rosa do Povo (1945), Claro Enigma (1951), Poemas
(1959), Lição de Coisas
(1962), Boitempo (1968),
Corpo (1984), além dos póstumos Poesia Errante (1988), Poesia e Prosa (1992) e Farewell (1996). Drummond produziu
uma das obras mais significativas da poesia brasileira do século XX. Forte
criador de imagens, sua obra tematiza a vida e os acontecimentos do mundo a
partir dos problemas pessoais, em versos que ora focalizam o indivíduo, a terra
natal, a família e os amigos, ora os embates sociais, o questionamento da
existência, e a própria poesia.
Fonte
da minibiografia: www.astormentas.com/
SAGRAÇÃO
Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.
De giolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês a minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.
Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher, no peito em sangue,
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.
A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.
Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.
De giolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês a minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.
Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher, no peito em sangue,
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.
A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.
O MACACO BEM INFORMADO
Indaga a este macaco teu passado
e ele dirá o certo e o imaginado.
O que te aconteceu na estranha lura
jamais vista de humana criatura
foi delírio ou concreta realidade,
visão inteira ou só pela metade?
Como aferir, em cada ser, a parte
que tem raiz numa insondável arte
(de Deus ou do Tinhoso) que transforma
o banal em sublime, o sonho em norma?
Tudo isto e muito mais, por um pataco
saberás, consultando este macaco.
Indaga a este macaco teu passado
e ele dirá o certo e o imaginado.
O que te aconteceu na estranha lura
jamais vista de humana criatura
foi delírio ou concreta realidade,
visão inteira ou só pela metade?
Como aferir, em cada ser, a parte
que tem raiz numa insondável arte
(de Deus ou do Tinhoso) que transforma
o banal em sublime, o sonho em norma?
Tudo isto e muito mais, por um pataco
saberás, consultando este macaco.
REGISTRO
CIVIL
Ela colhia
margaridas
quando eu passei.
As margaridas eram
os corações de seus
namorados,
que depois se
transformaram em ostras
e ela engolia em
grupos de dez.
Os telefones
gritavam Dulce,
Rosa, Leonora,
Carmen, Beatriz.
Porém Dulce havia
morrido
e as demais
banhavam-se em Ostende
sob um sol neutro.
As cidades perdiam
os nomes
que o funcionário
com um pássaro no ombro
ia guardando no
livro de versos.
Na última delas,
Sodoma,
restava uma luz
acesa
que o anjo soprou.
E na terra
eu só ouvia o rumor
brando, de ostras
que deslizavam,
pela garganta
implacável.
Brejo das Almas (1934)
POEMA
DE SETE FACES
Quando nasci, um
anjo torto
desses que vivem na
sombra
disse: Vai, Carlos!
ser gauche na vida.
As casas espiam os
homens
que correm atrás de
mulheres.
A tarde talvez
fosse azul,
não houvesse tantos
desejos.
O bonde passa cheio
de pernas:
pernas brancas
pretas amarelas.
Para que tanta
perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do
bigode
é sério, simples e
forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros
amigos
o homem atrás dos
óculos e do bigode.
Meu Deus, por que
me abandonaste
se sabias que eu
não era Deus,
se sabias que eu
era fraco.
Mundo mundo vasto
mundo
se eu me chamasse
Raimundo
seria uma rima, não
seria uma solução.
Mundo mundo vasto
mundo,
mais vasto é meu
coração.
Eu não devia te
dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente
comovido como o diabo.
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
PROCURA DA POESIA
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não
contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à
efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à
linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
MÃOS DADAS
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos,
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens
presentes,
a vida presente.
( Sentimento do Mundo)
CONGRESSO
INTERNACIONAL DO MEDO
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
( De Sentimento do Mundo)
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
( De Sentimento do Mundo)
OS
MORTOS
Na ambígua intimidade
que nos concedem
podemos andar nus
diante de seus retratos.
Não reprovam nem sorriem
como se neles a nudez fosse maior.
(De Lição de Coisas)
Na ambígua intimidade
que nos concedem
podemos andar nus
diante de seus retratos.
Não reprovam nem sorriem
como se neles a nudez fosse maior.
(De Lição de Coisas)
De
O AMOR NATURAL,
1992
SUGAR E SER SUGADO PELO AMOR
Sugar e ser sugado pelo amor
no mesmo instante boca milvalente
o corpo dois em um o gozo pleno
que não pertence a mim nem te pertence
um gozo de fusão difusa transfusão
o lamber o chupar o ser chupado
no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua.
DE ARREDIO MOTEL EM COLCHA DE DAMASCO
De arredio motel em colcha de
damasco
viste em mim teu pai morto, e
brincamos de incesto.
A morte, entre nós dois,
tinha parte no coito.
O brinco era violento, misto
de gozo e asco,
e nunca mais, depois, nos
fitamos no rosto.
O QUE SE PASSA NA CAMA
(O que se passa na cama
é segredo de quem ama.)
É segredo de quem ama
não conhecer pela rama
gozo que seja profundo,
elaborado na terra
e tão fora deste mundo
que o corpo, encontrando o corpo
e por ele navegando,
atinge a paz de outro horto,
noutro mundo: paz de morto,
nirvana, sono de pênis.
Ai, cama, canção de cuna,
dorme, menina, nanana,
dorme a onça suçuarana,
dorme a cândida vagina,
dorme a última sirena
ou a penúltima... O pênis
dorme, puma, americana
fera exausta. Dorme, fulva
grinalda de tua vulva.
E silenciam os que amam,
entre lençol e cortina
ainda úmidos de sêmen,
estes segredos de cama.
PARA O SEXO A EXPIRAR
Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante.
Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.
Amor, amor, amor — o braseiro radiante
que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.
Pobre carne senil, vibrando insatisfeita,
a minha se rebela ante a morte anunciada.
Quero sempre invadir essa vereda estreita
onde o gozo maior me propicia a amada.
Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe?
enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer
antes que, deliciosa, a exploração acabe.
Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo,
e assim possa eu partir, em plenitude o ser,
de sêmen aljofrando o irreparável ermo.
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