Ator foge do estereótipo de eterno galã e surpreende como um velho judeu no musical “Um violinista no telhado” (Foto: George Magaraia)
Por trás de uma longa barba grisalha se esconde o ator que, possivelmente, mais seduziu, amou e traiu as protagonistas de telenovelas brasileiras. José Mayer agora é outro. Não mais o galã do horário nobre da televisão. Mas um velho judeu que luta para manter as tradições de sua família, prestes a perder seu pedaço de chão. É esta a história de Tevye, seu personagem no musical “Um violinista no telhado”, que se passa na Rússia do começo do século passado.
Curiosamente é no Leblon, mesmo bairro no qual se passaram seus últimos romances novelescos, que Zé, como é chamado carinhosamente por todos a sua volta, dá uma guinada radical em sua carreira. “Estou num momento de reinvenção. Esta peça é meu renascimento como ator. É a reinauguração da minha vida”, diz.
O dono da voz grave que retumba pelos corredores do primeiro andar do teatro Oi Casa Grande aguarda a reportagem do iG na porta de seu camarim.
Enquanto vai se arrumando para mais um espetáculo, ele concede a entrevista a seguir. Prepara e bebe seu concentrado de mel e chá de canela com maçã. É seu segredo para manter a tríade voz-corpo-mente sob controle.
Antes de encarar os 130 minutos de palco, no qual dança, canta e interpreta com uma energia inesgotável, Zé fala da eterna fama de galanteador às recentes mudanças políticas em Brasília. “Estou adorando mulheres no poder. A canalhice é uma coisa, a meu ver, do universo masculino. Somos canalhas com mais facilidade e competência”, diz, com um riso sacana, típico do velho e bom Mayer de sempre.
“Além do mel com chá de canela e maçã, faço ginástica com as cordas vocais e cuidados normais na vida cotidiana para não cansar a voz”
iG: Quando foi a última vez que você esteve com uma barba como esta?
JOSÉ MAYER: Nunca usei uma barba tão grande. Sempre estive de barba limpa. Esta barba é bíblica. Estou sem cortar desde 28 de dezembro, quando assinei o contrato da peça. No começo é difícil de acostumar, mas estou gostando muito. Começo a entender por que homens mais velhos devem usar barba.
iG: Por quê?
JOSÉ MAYER: Para ficar com cara de homens mais velhos (risos)!
iG: Você cansou de fazer papel de galã em novelas?
JOSÉ MAYER: Não cansei, não. Mas o fato de se fazer um personagem tão marcante, e a necessidade de eu ter uma barba, limitou minha escalação na TV. Tive que sair do personagem que me deram para a próxima novela das nove, “Fina Estampa”.
iG: Abriu mão de um papel de destaque na TV pelo teatro?
JOSÉ MAYER: Graças a minha barba, escapei de fazer de novo um personagem chamado Paulo ligado ao universo da moda. Acabei de fazer um papel deste tipo, que era pai de uma modelo e era casado com outra modelo (na novela “Viver a Vida”, de 2009)! Pela barba, Wolf Maya (diretor) e Aguinaldo Silva (autor) tiveram a maravilhosa ideia, a maior gentiliza, de mudarem meu personagem.
iG: Levará a barba pela primeira vez para a novela?
JOSÉ MAYER: Exatamente. Me mantenho no elenco, só que entro mais tarde. O que é muito bom para mim, porque entro no capítulo 30 ou 40. Pegar uma novela mais curta é uma vantagem e tanto (risos). Farei o Pereirinha, que é um barbudo! Dado como morto, ele reaparece porque fica sabendo que a personagem da Lilia Cabral ganhou na loteria. É um pouco canalha, isso me convém. É bem interessante fazer um canalha.
iG: Como foi o processo de mergulho no universo judaico para esta peça?
JOSÉ MAYER: Há uma maravilhosa coincidência na minha vida. Fiz dois judeus em espetáculos, com sucesso indescritível, em intervalo redondo de trinta anos. Em “Bent”, de Martin Sherman, meu personagem era um judeu homossexual, na época da segunda guerra mundial, preso e levado a um campo de concentração. E trinta anos depois, meu segundo judeu, neste musical.
iG: De que forma você se modifica ao encenar uma realidade de vida tão diferente da sua?
JOSÉ MAYER: Isso marca profundamente a minha percepção do universo desse povo tão perseguido, humilhado e torturado. É uma compreensão que, através do teatro, se percebe a história. Nunca tive nenhum interesse pela religião judaica até fazer estas peças. Embora seja um curioso de todas as religiões.
iG: Tem alguma crença?
JOSÉ MAYER: Tenho uma formação católica, mas minha compreensão de Deus é uma coisa muito abrangente. Não fecho com nenhuma ortodoxia religiosa. Digamos que eu seja um agnóstico. Sou como as pessoas que não encontram explicações suficientes para os mistérios da existência de Deus.
iG: Na peça, os moradores do vilarejo russo de Anatevka são expulsos de sua terra. Dá para se fazer um paralelo com os que vivem onde será construída a usina hidrelétrica de Belo Monte, no norte do País?
JOSÉ MAYER: Dá, porque fala de minorias oprimidas, de povos oprimidos, é tudo similar. Mas o mais importante do espetáculo é a história do pai com suas filhas. Ele vive um momento em que todas as famílias vivem, quando se precisa decidir o futuro dos filhos. Este é o cerne da peça: a luta entre a tradição, seguindo os valores habituais dos mais velhos, e o consentimento que as mudanças e novos parâmetros morais mudem estas tradições.
iG: Como você se posiciona: do lado dos mais modernos ou dos tradicionais?
JOSÉ MAYER: A experiência humana é sempre mutável. Estou sempre entre as duas coisas. Mas o meu caráter mineiro é parecido com os tradicionais. A mineiridade consiste em ter apreço pela tradição. O conservadorismo é uma característica do mineiro.
iG: Quando você precisou, pela primeira vez, romper com a tradição?
JOSÉ MAYER: A tradição é um peso importante na minha vida. Mudar foi uma necessidade. Tive formação fechada, estudei em colégio de padre, com muito estudo, confinado intramuros. Depois saí, fui para a universidade e no mesmo ano fui para o teatro. Aí foi quando rompi com tudo. Zuenir Ventura escreveu o livro ‘1968, o ano que não terminou’. Para mim é ‘o ano que tudo começou’.
iG: É um ano emblemático para muitos...
JOSÉ MAYER: Claro! Em 68, cheguei em Belo Horizonte, passei para o curso de Filosofia e Letras na UFMG e comecei a fazer teatro. Isso numa época em que o País começava a passar por uma grande transformação. 1968 foi o início da minha renovação, saindo de uma formação fechada para uma experiência aberta com o teatro.
“Tenho algumas gravações amadoras. Mas não fiz nada importante do ponto de vista de gravação. Não sei se faria um CD"
iG: Você chegou a sofrer represálias dos militares?
JOSÉ MAYER: Foi um horror! Com minha primeira peça, ‘Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come’, do Vianinha, fomos apedrejados pela polícia. O cartaz da peça era um gorila preto, referência clara aos militares, segurando um estandarte da ‘tradição, família e propriedade’. Fomos apedrejados no ensaio do teatro da Imprensa Oficial. Era outubro de 1968, antes portanto do AI-5 (ato institucional que limitou a liberdade de expressão no País).
iG: Envolveu-se então com o movimento estudantil?
JOSÉ MAYER: Isso, mas logo minha militância passou a ser de palco. Insisti com o teatro. Fiquei em Minas fazendo teatro como ator de 1968 a 1979. Desses 11 anos, foram sete e meio como produtor do teatro Senac. Produzi onze espetáculos, sendo dez textos nacionais, forçando a presença do autor brasileiro e lutando contra a censura. Isso é luta.
iG: Tem saudade dessa época de utopias e experimentações?
JOSÉ MAYER: Não sou saudosista. O momento bom é hoje. Minha carreira tem desabrochado. Estou num momento de reinvenção com este musical. Digo que neste momento, esta peça é meu renascimento como ator. É a reinauguração da minha vida, abrindo uma perspectiva muito rica.
iG: Ainda falando de política, como vê os últimos acontecimentos?
JOSÉ MAYER: Estou adorando mulheres no poder. Nós temos mulher na presidência, na Casa Civil... Eu gosto. É promissor. As mulheres são, não sei se é fantasia minha, menos corruptíveis.
iG: Os homens devem ficar preocupados com esta dominação feminina?
JOSÉ MAYER: Não (risos). É hora dos homens aceitarem a parceria. Mulher traz tanta coisa para o poder... A canalhice é uma coisa, a meu ver, do universo masculino.
iG: Como assim?
JOSÉ MAYER: Somos canalhas com mais facilidade e competência. Elas são mais amorosas, mais intensas, mais emocionadas. Nós somos mais canalhas e dissimulados e safados. Que bons ventos tragam as mulheres.
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