VOVÔ DO ILÊ: " A BAHIA É PRETA, SÓ FALTA ASSUMIR"
Antônio Carlos dos Santos é Vovô desde os 9 anos de idade, quando apareceu na escola onde estudava vestindo um paletó. Desde então seu apelido virou referência de luta e resistência da causa negra.
Antônio Carlos dos Santos é Vovô desde os 9 anos de idade, quando apareceu na escola onde estudava vestindo um paletó. Desde então seu apelido virou referência de luta e resistência da causa negra. Desafiando estudos e estatísticas, ele, negro, pobre e sem curso superior, ganhou o mundo ao lado do Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro do Brasil, que a cada ano cresce mais. No último carnaval, foi o quarto bloco mais exposto na mídia, já fez parcerias com o Equador, país homenageado este ano, e recentemente recebeu uma proposta da Zâmbia, também interessada em ser destaque no Bloco.
O Ilê começou saindo com 100 foliões, hoje são 3 mil, todos negros, o que para alguns soa como um racismo às avessas, mas para seu fundador é apenas uma forma de autenticar a força da negritude em Salvador. Mas tanto reconhecimento não vem só da festa. Projetos sociais, cursos profissionalizantes e escolas para crianças da Liberdade dão mais força ao trabalho realizado.
O nublog foi até o Curuzú para conversar com Vovô, que se define como um negão que conseguiu pular o muro e fugir do controle, e que diz: “No nosso discurso não existe o negro coitadinho que é vítima do branco”.
Como nasceu o Ilê Aiyê?
Vovô – O Ilê surgiu em 1974. A ideia partiu de Apolônio de Jesus (já falecido), que tinha vontade de fazer um bloco negro aqui na Liberdade, mais especificamente no Curuzú. O bairro foi escolhido por ser negro e sempre ter manifestações culturais, principalmente ligadas ao carnaval. A maioria desses agitadores culturais vinham da Escola Parque, de onde eu também vim. Desde os 14 anos nós promovíamos ensaios, festas juninas e passeios pelo litoral baiano.
No início, pensamos em fazer um bloco de índios, mas um dia, voltando de Itapuã, eu e Apolônio tivemos a ideia de criar um bloco só para negros. Nós observávamos que brincávamos o carnaval na Liberdade, e à tarde íamos para o Tabuão ver os Filhos de Gandi e os Internacionais, que eram blocos onde o negro não saía. O negro só participava tocando percussão ou carregando as alegorias. Daí, surgiu a ideia de fazer um bloco só de negão. Nós já tínhamos alguns passeios, um time de futebol só de negros, o Vitorinha, onde apenas dois brancos jogavam e com o Ilê Aiyê demos origem ao termo “bloco afro”.
Além dessa efervescência cultural, nós sempre tivemos noção da questão do racismo. Minha mãe foi uma mulher de vanguarda, de esquerda, trabalhou em fábrica e tinha uma veia revolucionária. Ela dizia que nós tínhamos que estudar, pois o negro tem que estar sempre um ponto na frente do branco.
“No Brasil sempre teve cotas; para filhos de latifundiários, para estrangeiros, mas quando isso é voltado para os negros surge polêmica”
Como foi a escolha do nome do bloco?
Vovô – Eu insisti muito para que o bloco fosse chamado de Black Power (poder negro), mas nós fomos aconselhados a não colocar esse nome, pois a repressão da ditadura era grande. Então, fomos pesquisar um nome em ioruba. Um amigo nosso belga, que já havia morado na África, trouxe um material vasto e achamos uns cinco nomes, que remetiam a “poder negro”.
Entre eles, existia o Ilê Aiyê, que significa o “mundo negro”, “a casa do negro”. Eu, particularmente, não queria, mas é um nome que tem tudo a ver com a proposta do bloco.
Que influências vocês tiveram para criar o bloco?
Vovô – Naquela época, nós éramos muito influenciados pela música negra americana e pelo próprio movimento negro americano. Mesmo com todas as dificuldades, com a ditadura militar, nós tínhamos acesso a essas informações. Todos nós ouvíamos James Brown e Jackson 5, tínhamos cabelo black power e usávamos calça boca-de-sino. E não era apenas a negrada aqui da Liberdade que seguia essa filosofia, o pessoal de bairros como o Garcia e a Federação também participavam. A influência de James Brown foi tão grande que nas festas que aconteciam aqui na Liberdade você tinha que saber dançar, tinha caras especializados nisso, quando eles chegavam tomavam conta da festa, ninguém mais dançava.
Mas quando nós fundamos o Ilê optamos por ter como tema central a Mãe África. Só viemos falar dos Estados Unidos em 1993, quando nós saímos com o tema “América Negra – O Sonho Africano”.
“Se o povo negro não partir para tomar o poder, essa reparação nunca será feita. Eu quero um prefeito negro nessa cidade”
Como a sociedade soteropolitana reagiu ao surgimento do bloco?
Vovô – Foi uma reação muito dura, até de falsos africanos nós fomos chamados. Mas eu sempre digo que o Ilê não inventou nada, ele só colocou em prática algumas coisas, despertou a atenção da sociedade para o negro e para esse sentimento de negritude. Antes, ninguém usava roupas coloridas, diziam que o negro de vermelho era o diabo. As meninas não trançavam os cabelos, enfim, o negro não se assumia e o nosso bloco trouxe tudo isso à tona. Eu mesmo tomei uma vaia quando saí na rua com uma bata africana, aqui mesmo na Liberdade. Os jornais lidaram da mesma forma, principalmente o A Tarde, que fez muitas críticas.
Só negros podem sair no Ilê. Isso também não é uma forma de racismo?
Vovô – A população pode participar de qualquer atividade desenvolvida aqui no bloco, mas no carnaval, não. A Bahia é muito dura. Só quem é negro aqui, sabe como as coisas funcionam. Aparentemente tudo é maravilhoso, mas o que o Ilê faz é o que a maioria da população deveria fazer, abrir a boca e denunciar, precisamos nos rebelar contra isso. Eu não posso abrir um bloco se eu não me sinto contemplado. Na Bahia, se você se esquece que é negro alguém vai te lembrar, mas no sentido pejorativo - baixe a sua bola que você é negão” .
Mas a gente observa uma mistura racial muito grande em outros blocos afros como o Olodum e o Malê Debalê, e o Ilê não segue essa tendência.
Vovô – Você vê isso apenas no carnaval. Quando passa o carnaval, cada qual é seu cada qual. A casa do negro é invadida e a do branco não, o acesso ao emprego e à educação é diferente, o tratamento não é o mesmo. É preciso bater nisso, se o Ilê não tivesse surgido com esse ideal de negritude dizendo “eu sou negão”, essa revolução não teria sido feita. Hoje há muito mais pessoas se assumindo como negras, antes elas tinham vergonha.
Paralelo a isso surgiu uma indústria da cultura negra, que é muito rentável, mas apesar dessa aparente democracia, até que se prove o contrário, o negro é o vilão. O que você sempre ouve aqui na Bahia é alguém dizer “procure seu lugar, negão” e quando eu procuro meu lugar ainda reclamam, por que isso acontece?
Na comemoração do aniversário de Nelson Mandela, artistas de todas as raças se reuniram para celebrar, seguindo uma filosofia de união das raças. O Ilê não vai contra essa ideologia ao barrar não negros do seu carnaval?
Vovô- Você realmente vê artistas que se comprometem com a causa negra, levam o legado de Mandela a sério, têm coragem de defender essas ideias. Mas aqui na Bahia não existe isso. Quando chega o carnaval, todo mundo quer estar junto, mas no resto do ano cada um é cada um. Muita gente que diz aderir à causa quer sair apenas no Ilê, não sai em blocos afros menores, simplesmente por uma questão de visibilidade.
A força do Carnaval da Bahia nos anos 80 eram os blocos afros, mas hoje em dia eles estão apagados. Existe um caráter racista nessa atitude?
Vovô - Com certeza existe. Sempre houve racismo no carnaval da Bahia e ele virou uma indústria. Esses grandes blocos que estão aí hoje sabem utilizar muito bem o mecanismo do patrocínio. Só que nós também consumimos, usamos celular, todo o pessoal da periferia tem cartão de crédito, e eu nunca vi uma organização desse tipo patrocinar bloco afro ou qualquer manifestação cultural desse tipo. O empresariado não quer associar sua marca ao povo negro. A questão não é social é racial, portanto ela não pode ser considerada como um problema individual. Se fosse, para mim tudo estaria ótimo. Eu posso ser reconhecido em alguns lugares e a partir disso serei respeitado, mas se chega alguém desconhecido, as coisas ficam diferentes.
Eu fico impressionado quando um negro diz que nunca foi discriminado. É só parar e observar como as pessoas se portam quando um negro chega perto. Até hoje o cabelo rastafári é sinônimo de sujeira, coisa de ladrão ou maconheiro. Enfim, eu acredito que exista um esquema muito bem articulado para acabar com o carnaval popular.
“O Ilê não inventou nada... ele despertou a atenção da sociedade para o negro e para esse sentimento de negritude”
A gente sente que a cada ano que passa os blocos afros estão sendo afastados do circuito principal. O que vocês estão fazendo a respeito disso?
Vovô – Existem três blocos que têm condições e coragem de enfrentar a situação que nos é imposta: o Ilê Aiyê, o Olodum e o Malê Debalê. Diferente de outros lugares, o carnaval da Bahia tenta focar sua festa em poucos artistas, aqueles mesmos de sempre. Se você prestar atenção, todo mundo canta a mesma música, pula do mesmo jeito, faz a mesma coisa. Ninguém tem coragem de apostar no diferente. O Ilê, por exemplo, ano que vem vai sair com um tema em homenagem a Pernambuco, onde todo mundo tem espaço para brincar, diferente daqui. A cidade toda se envolve e há uma interlocução forte do governo com o movimento negro. Aqui, você não pode fazer uma crítica a esse grupo hegemônico que controla o carnaval que te acusam de não ser baiano. O negro precisa ter seu espaço reconhecido na Bahia, tem dias que você liga a televisão e pensa que está em outro país.
Qual é o papel social do Ilê? Quais projetos sociais são desenvolvidos aqui?
Vovô – Eu queria ser carnavalesco, mas minha mãe sugeriu que abríssemos aqui uma escola, que ganhou seu nome, Mãe Hilda. As crianças aqui do Curuzú sempre estiveram perto do Ilê e por isso resolvemos oferecer essa oportunidade. Da Escola Mãe Hilda nós criamos a Escola Banda Erê, que serve como uma complementação, oferece cursos de música, dança, canto, noções de cidadania. Nós temos ainda um Projeto de Extensão Pedagógica em parceria com a Fundação Odebretch. Atualmente oferecemos curso de corte e costura, ajudante de cozinha, informática, telemarketing, eletricidade predial e temos uma fábrica de calçados e bolsas.
Nós estamos agindo onde o governo não age, é uma complementação que se tornou essencial. E a filantropia tem um custo alto, ainda mais aqui no Brasil, onde não há uma cultura do voluntariado.
“No carnaval de Salvador, todo mundo canta a mesma música, pula do mesmo jeito, faz a mesma coisa. Ninguém tem coragem de apostar no diferente”
Como você avalia a postura dos jovens atualmente? Quando chega o carnaval, o jovem negro está aqui ou vai ver a Ivete passar?
Vovô – No carnaval nós conseguimos reunir as três gerações do Ilê, a juventude negra está aqui. Nós temos o Bloco Erê, formado por mil crianças, que saem de graça, mas pessoas acima de 18 anos devem comprar a fantasia para sair. No nosso discurso não existe o negro coitadinho que é vítima do branco, temos que fazer a nossa parte também e acabar com essa história de que tudo que é de negão é sem fim lucrativo.
Nessas grandes festas de axé você vê muitos jovens negros participando, mas eles vêm para cá também e devem pagar por isso. Se pagam caro lá, por que não pagariam aqui? O dinheiro precisa circular no nosso meio. Se eu vou no restaurante de Alaíde do Feijão, eu pago minha conta, então quando ela vem aqui, ela precisa pagar também. A única coisa que eu tenho para vender aqui é o carnaval, então eu sempre digo “não me peçam a única coisa que eu vendo”.
“O negro tem que estar sempre um ponto na frente do branco”
Falando um pouco de política, por que Salvador nunca conseguiu eleger um prefeito ou um governador negro?
Vovô – A Bahia ainda sofre com o ranço da escravidão mental. Nós temos muitos negros que estudam, se formam, mas acreditam que por isso passam a ser brancos. Eu nunca vi um negro dirigir ou ser indicado para um cargo majoritário dentro de um partido político, mas tem muita gente aqui da Liberdade interessada em se tornar vereador. O que falta é consciência política, não adianta ficar dizendo que somos maioria ou colocar a culpa nos brancos. Nós já sabemos que o poder é bom e nós queremos chegar até ele. Há cinco anos que nós batemos nessa tecla. Durante a época de eleições, só sobem aqui candidatos negros, independente da filiação partidária, ao passar do tempo nós captamos o que é realmente bom e o que pode ser descartado.
Dizem que isso é racismo, eu digo que não é. Nós queremos colocar o negro no poder e isso é bem definido aqui no Ilê Aiyê. Nós nos aproximamos dos partidos dominantes, que possuem algo construtivo para a comunidade negra. Recentemente Carlinhos Brown disse que João Jorge (presidente do Olodum) deve ser governador da Bahia. Todo mundo encarou como uma brincadeira, mas isso deve ser levado a sério.
Eu sempre comparo essa nossa situação com o quadro político na África do Sul. Depois do Apartheid, o partido de Nelson Mandela não elegeu nenhum político branco. Não preciso nem citar o presidente Barack Obama, e até no Rio de Janeiro você encontra mais prefeitos negros que aqui na Bahia. Tudo isso acontece porque o racismo aqui na Bahia é muito bem organizado, é uma perversão. Têm negros que ainda ficam felizes por votarem em um candidato branco, não se comprometem com a causa. Mas quando chega o candidato negro, querem saber se ele é homossexual, se ele usa maconha, se ele é ladrão, enfim, coisas que não são questionadas a um candidato branco. Se o povo negro não partir para tomar o poder, essa reparação nunca será feita. Eu quero um prefeito negro nessa cidade.
E para fazer essa reparação, o senhor entraria para a política, seria um candidato?
Vovô – Eu tenho consciência de que meu nome é forte, poderia realmente aglomerar vários votos. Eu já fui muito contestado por algumas entidades negras, mas hoje o Ilê consegue congregar todas elas, bem como o povo de santo, e certamente conseguiria votos de não negros, mas eu acho que não tenho o perfil de político partidário. Provavelmente eu não teria paciência para ocupar um cargo. Talvez eu esteja até errado, mas eu tenho uma dificuldade em lidar com isso. Por ser presidente do Ilê, muitas vezes já me chamaram de ladrão, explorador, gigolô da raça negra.
“O que se ouve sempre na Bahia é ‘procure seu lugar, negão’, e quando eu procuro meu lugar ainda reclamam”
Qual sua avaliação sobre a política de cotas nas universidades?
Vovô – Eu nem discuto muito isso porque pra mim foi uma medida perfeita. No Brasil sempre teve cotas; para filhos de latifundiários, para estrangeiros, mas quando isso é voltado para os negros surge toda essa polêmica. Enquanto o Brasil não assumir a sua cara preta, a situação vai continuar difícil. Para dar um exemplo, dias atrás o Esporte Espetacular veiculou uma reportagem sobre os 15 anos do Tetracampeonato da Seleção Brasileira na Copa do Mundo. Mostraram filhos de jogadores da época, nenhum era negro. A gente precisa ter esse olhar crítico sobre tudo.
Uma recente pesquisa da Unicef divulgou que jovens negros e pobres morrem quase três vezes mais que jovens brancos. O que você acha que deveria ser feito para mudar esse quadro?
Vovô – É preciso investir na Educação. É preciso educar a Polícia. O que acontece aqui é que na dúvida, um negro jovem vira marginal. As pessoas quando veem um negro tomam um susto, já mudam sua postura, como se ele representasse algum perigo. Às vezes a pessoa é assaltada por um branco e relata como se o tivesse sido por um negro.
O dia 20 de novembro é feriado em vários estados, aqui não. Por que isso acontece?
Vovô – Nós do movimento negro nunca tivemos muito interesse em transformar essa data em um feriado, nós estamos conseguindo parar a cidade mesmo sendo um dia normal de trabalho. Aqui na Bahia, se você se esquece que é negro alguém vai te lembrar, mas no sentido pejorativo - baixe a sua bola que você é negão.
Qual é a cor da Bahia?
Vovô – A Bahia é preta, só falta ela assumir
sábado, 8 de agosto de 2009
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