JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO
José Inácio Vieira
de Melo (1968), alagoano radicado na Bahia, é poeta, jornalista e produtor
cultural.
Publicou os livros Códigos do silêncio
(Salvador: Letras da Bahia, 2000), Decifração
de abismos (Salvador: Aboio Livre Edições, 2002), A terceira romaria (Salvador:
Aboio Livre Edições, 2005) – Prêmio Capital Nacional de Literatura 2005, de
Aracaju, Sergipe, A
infância do Centauro (São Paulo: Escrituras Editora, 2007), Roseiral (São Paulo:
Escrituras Editora, 2010) e a antologia 50
poemas escolhidos pelo autor (Rio de Janeiro: Edições Galo Branco,
2011).
Organizou Concerto lírico a quinze vozes – Uma
coletânea de novos poetas da Bahia (Salvador: Aboio Livre Edições,
2004), Sangue Novo – 21
poetas baianos do século XXI (São Paulo: Escrituras Editora, 2011)
e as agendas Retratos
Poéticos do Brasil 2010 (São Paulo: Escrituras Editora, 2009) e Retratos Poéticos do Brasil 2013
(São Paulo: Escrituras Editora, 2012).
Publicou também o
livrete Luzeiro (Salvador:
Aboio Livre Edições, 2003) e o CD de poemas
A casa dos meus quarenta anos (Salvador: Aboio Livre Edições,
2008). Participa das antologias
Pórtico Antologia Poética I (Salvador: Pórtico Edições, 2003), Sete Cantares de
Amigos (Salvador: Edições
Arpoador, 2003) e Roteiro da poesia brasileira – Anos 2000 (São Paulo: Global,
2009). No exterior, participa das antologias Voix croisées:
Brésil-France (Marselha: Autre Sud, 2006), Impressioni d’Italia – Piccola antologia di poesia in
portoghese con traduzione a fronte (Napoli: U.N.O., 2011) e En la
otra orilla del silencio – Antologia de poetas brasileños contemporáneos
(Cidade do México: Unam / Ediciones Libera, 2012).
Coordenador e
curador de vários eventos literários, como o Porto da Poesia, na VII Bienal do
Livro da Bahia (2005), a Praça de Cordel e Poesia, na 9ª e na 10ª Bienal do
Livro da Bahia (2009, 2011) e o Cabaré Literário, na I Feira do Literária Ler
Amado, em Ilhéus (2012), assim como os projetos A Voz do Poeta (2001) e Poesia
na Boca da Noite (2004 a 2007), ambos em Salvador. Atualmente é curador dos
projetos Uma Prosa Sobre Versos, em Maracás, e Palavra de Poeta, em Planaltino.
Tem poemas
traduzidos para os seguintes idiomas: espanhol, francês, italiano, inglês e
finlandês. Foi coeditor da revista de arte, crítica e literatura Iararana, de 2004 a
2008. Edita o blog Cavaleiro de Fogo: www.jivmcavaleirodefogo.blogspot.com
E-mail:
jivmpoeta@gmail.com
PEDRA SÓ
I
Canto de peito ao
vento,
um boi de campina
anda comigo.
Outra vez as águas
antigas,
ravinas na memória
do tabuleiro.
É um boi das
algarobeiras
que muge a solidão.
Suas manchas,
ruminadas na paciência,
reúnem a terra.
O chão secando,
serranias, caatingas.
O boi nas malhadas
dos céus.
O sabor hereditário
estendido em varas,
couros leves
secando ao sol.
Sobre o couro do
país,
no terraço da
província que me é sagrada,
o poeta
o fogo
o cavalo
e os marmeleiros
onde se estendem
leopardos
sertânicos.
Ao céu do país, no
couro esticado,
o nome primeiro, à
luz do sol,
à sombra das
algarobeiras:
PEDRA SÓ
chã que se abre
ao cavaleiro
deslumbrado.
VIII
A pele dos
carneiros
encadernando os
primeiros nomes,
salmos secretos.
Evangelhos da boca
do pastor
lavram as visões
interiores.
E as ovelhas e os
bodes e as cabras,
couros e lãs
vestindo a saga dos homens.
Homero, cantador
assombrado
pelos astros e por
seus rastros,
singrou os mares da
imaginação
e assim foi o
inventor de deuses e homens.
Homero tinha um
cavalo
onde cabiam todos
os guerreiros
e escreveu com
sangue e verbo
os salmos da sua
história
cujos ritos e
sacrifícios
se repetem em mim,
agora.
E um dia os
escribas gravaram
nas peles dos bois
e dos carneiros
os cantos do cego
que inaugurou
os sertões ocidentais.
XII
Sertão, cartilha e
dicionário
que recupera o
fôlego do ser
e laça as águas do
momento
que escorregavam da
memória.
Sertão, coisa de
espírito mesmo:
o nome incrustado
no âmago.
No Sertão, o
princípio do enigma,
o galope para
dentro do redemoinho,
e na garupa
alforjes de couro
bordados com a
chama do amor.
O Sertão encourando
os primeiros saberes...
XXI
As estrelas
partilham
os segredos das
letras.
Escudo misterioso
do ser,
as palavras estão
grávidas.
Em silêncio luto a
luta vã.
Busco a mão direita
de Devar que,
decepada por
lâminas cabralinas
no curral da
Ribeira do Traipu,
deu adeus ao seu
corpo.
E de sua boca,
palavras em brasa.
A mão esquerda
segurou o pulso direito
de onde brotava,
instantânea,
uma dolorosa rosa
de sangue.
Da dor de Devar
e de seu punho,
o veio da arte.
E debaixo de algum
pé de algaroba,
lá na Ribeira do
Traipu,
a mão direita de
Devar cava o chão,
prepara os sete
palmos e espera pelo corpo
que perambula
perdido pelo sertão das Alagoas.
XXIII
Às cinco horas da
tarde,
no céu da Pedra Só,
um cavalo emerge
das nuvens
e uiva para a lua.
Às cinco horas em
ponto,
na fazenda Pedra
Só,
a lua é o olho do
dragão.
E a moça de Jorge
de Lima
é enorme, enorme,
e engole a lua e vai
ficando
menor, menor.
Mas continua caindo
num desembesto sem
fim
até virar Alice.
E logo ali, um
alce.
E logo ali,
o galo de Abraão
Batista
numa briga feroz
com o boi do
Patativa.
Às cinco em ponto
da tarde,
no reino da Pedra
Só,
Federico Garcia
Lorca
montado num corcel
de algodão
crava seu punhal de
prata
nos olhos da
escuridão.
XXV
O sapateiro celeste
costura
um labirinto no
couro do touro,
onde se misturam e
se perdem
e se encontram
Damião Alagoano e
Pedro Vaqueiro,
Sérvulo Duarte e
Linduarte,
Vavá Machado e
Marcolino,
e Moisés, o meu
avô.
A legião de
vaqueiros
que me acompanha e
me protege
com as sete peles
do gibão de couro.
A legião de
argonautas
que me acompanha
em busca do velo de
ouro.
A legião de
vaqueiros
que me acompanha e
que entoa,
na origem do
sentimento,
o que a palavra não
diz
mas a voz aboia.
XXVII
Do alto da Pedra
Só, contemplo a onça:
fulgor de malhas
sabor de mato.
A velha casa é chão
e couro.
Fuga
As crianças galopam goiabeiras,
sentem o gosto da paisagem de êxtase.
As crianças são deuses, mas não trazem
o germe do sofrimento, só brilham.
Quando o homem chega dentro da criança,
o infinito cai e a casa começa
a ter entranhas, a criar paredes.
Quem mais sofre com isso são as pedras:
sem sangue, sem respiração, sem ritmo,
seus escombros preenchem toda terra;
seus sonhos - fuzilados no horizonte.
Eu ainda saio dessa ciranda,
entro no primeiro buraco negro
e vou me inventar em outra galáxia.
Abandono
No teu banquete,
não é permitida a minha presença.
O colorido dos meus anelos
é uma afronta à tua matemática.
Apesar de não compreenderes,
os caracóis dos meus cabelos oferecem
sombra
ao sonho das minhas palavras.
E mais uma vez subo ao telhado da infância
e com os passarinhos vou aprendendo
a ser o voo dentro da paisagem.
E no paredão do açude, o menino que foste
corre,
é mais ligeiro que o abandono que sofremos
juntos.
Sim, o abandono,
única presença que compartilhamos.
Canibal
Bota a comida no fogo e deixe
que os aromas das carnes recendam,
deixe as carnes mugirem, balirem,
chiarem no delírio das brasas.
Que o cheiro das picanhas e dos pernis
despertem os rios de minha boca!
Bota logo a comida na mesa e deixe
que eu louve, no ritmo da arcada, as
delícias das carnes.
E olharei em teus olhos e sentirei as tuas
carnes,
as tuas carnes que vibram por meus caninos afiados.
DILÚVIO
O olho daquele pingo de chuva que vem
caindo
revela a minha convicção: acredito no
dilúvio.
Não tem mais jeito, para toda árvore que
olho
só vejo tábuas para construir a arca da
salvação.
Sei que todos riem de mim, fazem galhofa
e acham mesmo que estou com um chocalho no
juízo.
Mas é que tive um sonho: um ser vestido de
água
inundava o meu dia a minha noite a minha
vida.
DANÇA
DAS REDONDILHAS
Vamos cantar um galope
no coração da caatinga,
dizer palavras de luz
nos versos de sete sílabas,
caminhar passo acertado:
cadência de redondilhas.
CIÚME
Trêmula, incendiando o pavio da íris,
assim é essa dor que me devora
e que a tudo devasta.
Cego, arriscando passos,
sigo por um deserto de lâminas:
afiadas facas da perdição.
PRESSÁGIO
Um rebanho de nuvens pairando pelas
pastagens dos céus
ganha forma original e me tira do chão,
e rodopiando nos ares sinto a tua presença
e leio tua imagem nesse gado celeste —
signo dos deuses.
E nada mais precisa ser anunciado.
NARCISO
Já não quero saber do amargor do vinho,
sei que sou um bicho espalhafatoso.
Assim vou, degrau por degrau,
lavando o sal do mar de meus olhos,
tirando os véus, despetalando as máscaras.
Qual lâmina d´água decepará a dúvida?
Qual sonho inscreverá a verdade?
CIÇO
CERQUEIRO
O meu é fazer cerca:
cavar buraco, aprumar mourão,
esticar arame com pé-dee-cabra,
apregar grampo nas estacas
em troca peço pouco:
basta me dar leite azedo,
rapadura, farinha e uma hora
de sombra de pé-de-pau.
Precisa nada mais não!
Me dê coalhada todo dia
que eu cerco o mundo
pros bichos não se perderem.
ROMARIA
Oh que caminho tão longe
Cheio de pedra e areia.
Domínio popular
Oh que estrada mais
comprida
Oh que légua tão tirana
H. Teixeira e Luiz Gonzaga
Dentro de mim, nas lonjuras,
bem dentro do meu juízo,
um romeiro caminhando
em busco do que preciso.
Oh que caminho tão longe
cheio de pedra e de areia,
tenho que firmar o passo
e romper essas cadeias.
Pergunto, em meu desatino,
aonde ir? Que lugar?
Por que a sina da cigarra
Esparramando o cantar?
Certo, sou aquele que parte
numa eterna romaria,
faça sol ou faça chuva,
seja de noite ou de dia.
O caminho que percorro
não o da Rosa dos Ventos,
pois ele surge do nada,
de acordo com o momento.
Oh que estrada mais comprida,
tanto azul, tanta poeira,
em que plaga do Universo
estará meu Juazeiro?
Cada qual tem seu destino:
Pedro Vaqueiro tangia
gado pelo mundo afora;
seu Fortunato fazia
forno pra queimar tijolo;
Manezin Tetê, meu tio,
caçava tatu e onça
com o luzeiro dos pavios.
Lá me vou com minha cruz,
são poucos beiços de açude
e tantas léguas tiranas.
Maior e vária é esta sede
que vale cada passada
desta minha romaria.
Peregrino de mim mesmo
no
meio da travessia.
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