terça-feira, 2 de outubro de 2012

POESIAS DE JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

José Inácio Vieira de Melo (1968), alagoano radicado na Bahia, é poeta, jornalista e produtor cultural.

Publicou os livros Códigos do silêncio (Salvador: Letras da Bahia, 2000), Decifração de abismos (Salvador: Aboio Livre Edições, 2002), A terceira romaria (Salvador: Aboio Livre Edições, 2005) – Prêmio Capital Nacional de Literatura 2005, de Aracaju, Sergipe, A infância do Centauro (São Paulo: Escrituras Editora, 2007), Roseiral (São Paulo: Escrituras Editora, 2010) e a antologia 50 poemas escolhidos pelo autor (Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2011).

Organizou Concerto lírico a quinze vozes – Uma coletânea de novos poetas da Bahia (Salvador: Aboio Livre Edições, 2004), Sangue Novo – 21 poetas baianos do século XXI (São Paulo: Escrituras Editora, 2011) e as agendas Retratos Poéticos do Brasil 2010 (São Paulo: Escrituras Editora, 2009) e Retratos Poéticos do Brasil 2013 (São Paulo: Escrituras Editora, 2012).
Publicou também o livrete Luzeiro (Salvador: Aboio Livre Edições, 2003) e o CD de poemas A casa dos meus quarenta anos (Salvador: Aboio Livre Edições, 2008). Participa das antologias Pórtico Antologia Poética I (Salvador: Pórtico Edições, 2003), Sete Cantares de Amigos (Salvador: Edições Arpoador, 2003) e Roteiro da poesia brasileira – Anos 2000 (São Paulo: Global, 2009). No exterior, participa das antologias Voix croisées: Brésil-France (Marselha: Autre Sud, 2006),  Impressioni d’Italia – Piccola antologia di poesia in portoghese con traduzione a fronte (Napoli: U.N.O., 2011) e En la otra orilla del silencio – Antologia de poetas brasileños contemporáneos  (Cidade do México: Unam / Ediciones Libera, 2012).

Coordenador e curador de vários eventos literários, como o Porto da Poesia, na VII Bienal do Livro da Bahia (2005), a Praça de Cordel e Poesia, na 9ª e na 10ª Bienal do Livro da Bahia (2009, 2011) e o Cabaré Literário, na I Feira do Literária Ler Amado, em Ilhéus (2012), assim como os projetos A Voz do Poeta (2001) e Poesia na Boca da Noite (2004 a 2007), ambos em Salvador. Atualmente é curador dos projetos Uma Prosa Sobre Versos, em Maracás, e Palavra de Poeta, em Planaltino.

Tem poemas traduzidos para os seguintes idiomas: espanhol, francês, italiano, inglês e finlandês. Foi coeditor da revista de arte, crítica e literatura Iararana, de 2004 a 2008. Edita o blog Cavaleiro de Fogo: www.jivmcavaleirodefogo.blogspot.com
E-mail: jivmpoeta@gmail.com



PEDRA SÓ


I

Canto de peito ao vento,
um boi de campina anda comigo.
Outra vez as águas antigas,
ravinas na memória do tabuleiro.

É um boi das algarobeiras
que muge a solidão.
Suas manchas, ruminadas na paciência,
reúnem a terra.

O chão secando, serranias, caatingas.
O boi nas malhadas dos céus.
O sabor hereditário estendido em varas,
couros leves secando ao sol.

Sobre o couro do país,
no terraço da província que me é sagrada,
o poeta
          o fogo
                    o cavalo
e os marmeleiros onde se estendem
leopardos sertânicos.

Ao céu do país, no couro esticado,
o nome primeiro, à luz do sol,
à sombra das algarobeiras:
PEDRA SÓ
chã que se abre
ao cavaleiro deslumbrado.


VIII

A pele dos carneiros
encadernando os primeiros nomes,
salmos secretos.

Evangelhos da boca do pastor
lavram as visões interiores.
E as ovelhas e os bodes e as cabras,
couros e lãs vestindo a saga dos homens.

Homero, cantador assombrado
pelos astros e por seus rastros,
singrou os mares da imaginação
e assim foi o inventor de deuses e homens.

Homero tinha um cavalo
onde cabiam todos os guerreiros
e escreveu com sangue e verbo
os salmos da sua história
cujos ritos e sacrifícios
se repetem em mim, agora.

E um dia os escribas gravaram
nas peles dos bois e dos carneiros
os cantos do cego que inaugurou
os sertões ocidentais.


XII

Sertão, cartilha e dicionário
que recupera o fôlego do ser
e laça as águas do momento
que escorregavam da memória.

Sertão, coisa de espírito mesmo:
o nome incrustado no âmago.

No Sertão, o princípio do enigma,
o galope para dentro do redemoinho,
e na garupa alforjes de couro
bordados com a chama do amor.

O Sertão encourando os primeiros saberes...


XXI

As estrelas partilham
os segredos das letras.
Escudo misterioso do ser,
as palavras estão grávidas.

Em silêncio luto a luta vã.
Busco a mão direita de Devar que,
decepada por lâminas cabralinas
no curral da Ribeira do Traipu,
deu adeus ao seu corpo.

E de sua boca, palavras em brasa.
A mão esquerda segurou o pulso direito
de onde brotava, instantânea,
uma dolorosa rosa de sangue.

Da dor de Devar
e de seu punho,
o veio da arte.

E debaixo de algum pé de algaroba,
lá na Ribeira do Traipu,
a mão direita de Devar cava o chão,
prepara os sete palmos e espera pelo corpo
que perambula perdido pelo sertão das Alagoas.


XXIII

Às cinco horas da tarde,
no céu da Pedra Só,
um cavalo emerge das nuvens
e uiva para a lua.

Às cinco horas em ponto,
na fazenda Pedra Só,
a lua é o olho do dragão.

E a moça de Jorge de Lima
é enorme, enorme,
e engole a lua e vai ficando
menor, menor.

Mas continua caindo
num desembesto sem fim
até virar Alice.

E logo ali, um alce.
E logo ali,
o galo de Abraão Batista
numa briga feroz
com o boi do Patativa.

Às cinco em ponto da tarde,
no reino da Pedra Só,
Federico Garcia Lorca
montado num corcel de algodão
crava seu punhal de prata
nos olhos da escuridão.


XXV

O sapateiro celeste costura
um labirinto no couro do touro,
onde se misturam e se perdem
      e se encontram
Damião Alagoano e Pedro Vaqueiro,
Sérvulo Duarte e Linduarte,
Vavá Machado e Marcolino,
e Moisés, o meu avô.

A legião de vaqueiros
que me acompanha e me protege
com as sete peles do gibão de couro.

A legião de argonautas
que me acompanha
em busca do velo de ouro.

A legião de vaqueiros
que me acompanha e que entoa,
na origem do sentimento,
o que a palavra não diz
mas a voz aboia.


XXVII

Do alto da Pedra Só, contemplo a onça:
fulgor de malhas
                         sabor de mato.

A velha casa é chão e couro.
  
 Fuga

As crianças galopam goiabeiras,
sentem o gosto da paisagem de êxtase.
As crianças são deuses, mas não trazem
o germe do sofrimento, só brilham.

Quando o homem chega dentro da criança,
o infinito cai e a casa começa
a ter entranhas, a criar paredes.
Quem mais sofre com isso são as pedras:

sem sangue, sem respiração, sem ritmo,
seus escombros preenchem toda terra;
seus sonhos - fuzilados no horizonte.

Eu ainda saio dessa ciranda,
entro no primeiro buraco negro
e vou me inventar em outra galáxia.


Abandono

No teu banquete,
não é permitida a minha presença.
O colorido dos meus anelos
é uma afronta à tua matemática.

Apesar de não compreenderes,
os caracóis dos meus cabelos oferecem sombra
ao sonho das minhas palavras.

E mais uma vez subo ao telhado da infância
e com os passarinhos vou aprendendo
a ser o voo dentro da paisagem.

E no paredão do açude, o menino que foste corre,
é mais ligeiro que o abandono que sofremos juntos.

Sim, o abandono,
única presença que compartilhamos.


Canibal

Bota a comida no fogo e deixe
que os aromas das carnes recendam,
deixe as carnes mugirem, balirem,
chiarem no delírio das brasas.
Que o cheiro das picanhas e dos pernis
despertem os rios de minha boca!
Bota logo a comida na mesa e deixe
que eu louve, no ritmo da arcada, as delícias das carnes.

E olharei em teus olhos e sentirei as tuas carnes,
as tuas carnes que vibram por meus caninos afiados.

DILÚVIO

O olho daquele pingo de chuva que vem caindo
revela a minha convicção: acredito no dilúvio.

Não tem mais jeito, para toda árvore que olho
só vejo tábuas para construir a arca da salvação.

Sei que todos riem de mim, fazem galhofa
e acham mesmo que estou com um chocalho no juízo.

Mas é que tive um sonho: um ser vestido de água
inundava o meu dia a minha noite a minha vida.


DANÇA DAS REDONDILHAS

Vamos cantar um galope
no coração da caatinga,
dizer palavras de luz
nos versos de sete sílabas,
caminhar passo acertado:
cadência de redondilhas.


CIÚME

Trêmula, incendiando o pavio da íris,
assim é essa dor que me devora
e que a tudo devasta.

Cego, arriscando passos,
sigo por um deserto de lâminas:
afiadas facas da perdição.


PRESSÁGIO

Um rebanho de nuvens pairando pelas pastagens dos céus
ganha forma original e me tira do chão,
e rodopiando nos ares sinto a tua presença
e leio tua imagem nesse gado celeste — signo dos deuses.
E nada mais precisa ser anunciado.


NARCISO

Já não quero saber do amargor do vinho,
sei que sou um bicho espalhafatoso.
Assim vou, degrau por degrau,
lavando o sal do mar de meus olhos,
tirando os véus, despetalando as máscaras.
Qual lâmina d´água decepará a dúvida?
Qual sonho inscreverá a verdade?


CIÇO CERQUEIRO

O meu é fazer cerca:
cavar buraco, aprumar mourão,
esticar arame com pé-dee-cabra,
apregar grampo nas estacas

em troca peço pouco:
basta me dar leite azedo,
rapadura, farinha e uma hora
de sombra de pé-de-pau.

Precisa nada mais não!
Me dê coalhada todo dia
que eu cerco o mundo
pros bichos não se perderem.


ROMARIA

         Oh que caminho tão longe
         Cheio de pedra e areia.
                   Domínio  popular

         Oh que estrada mais comprida
         Oh que légua tão tirana
                   H. Teixeira e Luiz Gonzaga

Dentro de mim, nas lonjuras,
bem dentro do meu juízo,
um romeiro caminhando
em busco do que preciso.

Oh que caminho tão longe
cheio de pedra e de areia,
tenho que firmar o passo
e romper essas cadeias.

Pergunto, em meu desatino,
aonde ir? Que lugar?
Por que a sina da cigarra
Esparramando o cantar?

Certo, sou aquele que parte
numa eterna romaria,
faça sol ou faça chuva,
seja de noite ou de dia.

O caminho que percorro
não o da Rosa dos Ventos,
pois ele surge do nada,
de acordo com o momento.

Oh que estrada mais comprida,
tanto azul, tanta poeira,
em que plaga do Universo
estará meu Juazeiro?

Cada qual tem seu destino:
Pedro Vaqueiro tangia
gado pelo mundo afora;
seu Fortunato fazia

forno pra queimar tijolo;
Manezin Tetê, meu tio,
caçava tatu e onça
com o luzeiro dos pavios.

Lá me vou com minha cruz,
são poucos beiços de açude
e tantas léguas tiranas.
Maior e vária é esta sede

que vale cada passada
desta minha romaria.
Peregrino de mim mesmo
no meio da travessia.

Nenhum comentário: